Cuidar da mente é fraqueza?
- Bethania Lopes
- 16 de set.
- 5 min de leitura
Quando o silêncio pesa mais do que palavras
Vivemos diariamente com pesos invisíveis, e na maioria das vezes nem sabemos de onde eles vêm. Nomeamos como ansiedade aquele acelero na mente e no coração que não dá trégua; de tristeza o desânimo e a vida descolorida que parece não passar; de frustração as trocas emocionais em relações que machucam com cobranças que nunca acabam.
Às vezes disfarçamos com um sorriso, outras nos refugiamos no trabalho e, com anos de uma prática — não saudável — acreditamos ter aprendido a silenciar a própria dor.
Mas o silêncio é mestre em se fazer presente, mesmo quando não há linguagem para denunciá-lo. Em um mundo que grita por manter o “normal”, fica ainda mais a cargo do silêncio a necessidade de se adequar. Homossexuais, pessoas pretas, ND’s (neurodivergentes), indígenas — aprendem a “normatizar” a rejeição para ter a sensação, ainda que falsa e passageira, de que se encaixam.
Isso é “normal” para você? Concordar que grupos expressivos de pessoas estejam apenas tentando achar um caminho de sobrevivência é “normal” para você?
Por que quem busca terapia são justamente aqueles privados de serem eles mesmos? Enquanto quem os priva se entende como “normal”?
É sobre esse processo que vamos conversar neste artigo.
O silêncio que adoece
O silêncio é um personagem constante na vida de quem sofre psiquicamente. Ele não chega de uma vez, ele vai se impondo, tomando espaço aos poucos, até que a pessoa já não sabe mais onde começou a se calar. É como se cada palavra não dita se transformasse em um tijolo, construindo muros internos que afastam ainda mais o sujeito de si mesmo e dos outros.
E quanto mais a sociedade insiste em moldes rígidos do que é aceitável, mais esse silêncio se fortalece. Porque se expressar pode significar ser ridicularizado, rejeitado, excluído. É por isso que tantos aprendem a sorrir enquanto sangram por dentro, a trabalhar até a exaustão para evitar pensar, a aceitar relações que não acolhem — só para não enfrentar o peso do julgamento.
Mas esse silêncio não é inofensivo. Ele adoece. Ele corrói a autoestima, distorce a identidade e cria uma sensação de inadequação que se renova todos os dias. Para muitas pessoas, sobretudo grupos minorizados, o silêncio é mais do que ausência de fala: é sobrevivência em um mundo que não lhes oferece espaço para existir plenamente.
E quando a sobrevivência se torna regra, viver deixa de ser um direito e passa a ser um esforço diário.
O peso de ser “diferente”
Ser “diferente” nunca foi um problema em si, aliás, se podemos usar a palavra "normal" a nosso favor... ser diferente é normal. O problema está em viver em uma sociedade que insiste em transformar diferenças em defeitos. É assim que pessoas homoafetivas crescem ouvindo que precisam “se ajustar”, que neurodivergentes são “complicados demais”, que pessoas pretas ou indígenas precisam “se adequar” para serem aceitas. O “normal” é colocado como um pedestal, e todos os que não se encaixam nesse molde são empurrados para fora dele.
Esse peso não é imaginário. Ele está nos olhares que julgam, nas piadas que ferem, nas oportunidades negadas, nos silêncios das famílias, nos diagnósticos que chegam como sentença em vez de acolhimento. É um peso que se infiltra na vida cotidiana, até nos gestos mais simples: escolher o que vestir, como falar, a quem contar sua história.
E quando cada escolha precisa ser calculada para evitar o julgamento, o viver perde a força. Muitos aprendem a se camuflar, a se moldar ao que o outro espera, como se fossem peças de um quebra-cabeça que nunca se encaixam de fato. Só que viver em constante adaptação não é viver: é sobreviver.
E aqui está a ferida: quando o direito de existir plenamente é sequestrado, o sofrimento psíquico deixa de ser apenas uma condição individual — torna-se um reflexo de um coletivo que insiste em negar espaço para a diversidade humana.
Quando o corpo e a mente pedem socorro
O corpo fala. A mente também. E quando já não encontramos espaço para sermos ouvidos no mundo, ambos encontram outras formas de gritar. Esse grito, muitas vezes, se manifesta em sintomas que chamamos de ansiedade, depressão, insônia, compulsões, crises de choro ou até mesmo em doenças físicas que insistem em aparecer sem causa aparente (esse pode ser um papo para outro dia: somatização).
Não é à toa. O que é silenciado na emoção se traduz em dor no corpo. A taquicardia que parece surgir do nada, o aperto no peito que te impede de respirar fundo, o cansaço que não passa nem depois de horas de sono, a sensação de não ter mais energia para levantar da cama. Esses sinais não são apenas “frescura” ou “fraqueza”: são avisos claros de que algo dentro de nós pede atenção.
Mas quantos aprendem a normalizar esses sinais? Quantos seguem vivendo em piloto automático, acreditando que “vai passar” ou que “não é nada”? Quantos, para não incomodar, escolhem o silêncio de novo — e se afastam ainda mais de si mesmos?
O corpo e a mente pedem socorro não para nos punir, mas para nos lembrar que somos humanos, não máquinas. E que viver exigindo de si perfeição e adaptação contínua não é apenas injusto: é desumano.
A psicoterapia como espaço de verdade e reconexão
A psicoterapia não é um remendo para “consertar” quem sofre. Não existe nada quebrado em ser quem você é. O que existe, muitas vezes, é um mundo que tenta nos quebrar quando não correspondemos ao que chamam de normalidade.
Dentro da terapia, não há exigência de performance, nem necessidade de provar valor. Há silêncio, sim, mas um silêncio diferente daquele que adoece: é um silêncio fértil, que abre espaço para a palavra que nunca encontrou lugar para existir. Ali, a dor pode ser dita sem medo, o choro não precisa ser escondido, a identidade não precisa ser negada.
É no encontro terapêutico que surge a possibilidade de olhar para si sem o peso dos olhares externos. O que parecia confusão vai ganhando forma. O que parecia fraqueza, revela-se força. O que parecia desencaixe, torna-se singularidade.
E é nesse processo que o sujeito descobre algo essencial: que não precisa sobreviver apenas — pode viver. A terapia é esse campo de reconexão com a própria verdade, onde se aprende, passo a passo, a habitar a própria vida sem precisar pedir desculpas por existir.
A coragem
Coragem de admitir que sozinho já não dá. Coragem de enfrentar memórias que doem, padrões que aprisionam, culpas que nunca foram suas. Coragem de se colocar diante de alguém e dizer: “eu não estou bem, e eu mereço cuidado”.
Essa coragem não surge da noite para o dia. Ela se constrói no limite, no cansaço de carregar pesos invisíveis por anos, no desejo de não mais viver apagado, tentando se encaixar em moldes que nunca caberão .É nesse ponto que muitos chegam à terapia: não por luxo, mas por necessidade de sobrevivência.
E é nessa escolha que a vida começa a se transformar. Porque o simples ato de se permitir pedir ajuda já rompe a lógica do silêncio. É como se, ao dizer “preciso de apoio”, a pessoa dissesse também: “eu não aceito mais viver pela metade, eu escolho me reconstruir inteiro”.
Modo de existência: vivendo ou sobrevivendo?
Sobreviver nunca deveria ser o objetivo final de uma vida. Mas é o que muitos fazem — e fazem bem. Só que isso não é sinal de sucesso, é sinal de adoecimento. Aprendem a se calar para não incomodar, a sorrir para não levantar suspeitas, a se adaptar para não serem excluídos. Sobrevivem.
Enquanto isso, a vida pede espaço para ser sentida e vivida na sua totalidade: com dificuldades, acertos, tropeços, recálculos de rota. Não há cura (para o que não é doença) e tampouco mágica para o sofrimento psíquico. Mas há caminhos possíveis de reconstrução. E a psicoterapia é um deles. Não é promessa de apagar dores, mas talvez seja uma premissa de ressignificação: a chance de dar novos significados ao que antes só parecia pesar.
Qual o seu modo de existência: “vi”vendo ou “sobre"vivendo?
✨ “…o resto é mar. É tudo que não sei contar…” (Wave - Tom Jobim)
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